A PAIXÃO NA CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DO PERÍODO SOCRÁTICO
Em
sua concepção de homem, Platão (PLATÃO, 2008, p. 69) mostra uma dualidade
psicofísica eternamente conflitante entre corpo e alma, uma vez que o homem é
tido como uma continuação da divindade. A alma anseia pela perfeição do mundo
inteligível, enquanto o corpo anseia pelos prazeres, porque é considerado o locus
de todos os vícios ou paixões. Com isso, tentaremos enfatizar essa relação
dualista entre a alma (os seus desejos), que assume a dimensão do sublime,
portanto comprometida com o Eros celestial, e o corpo, que adota o páthos das
paixões desenfreadas e conflitantes. Para tanto, serão utilizadas algumas obras
que se reportam a tais temas, como por exemplo: O Banquete e o Fedro,
de Platão.
O termo paixão deriva do grego pathos,
que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento e
assujeitamento. O conceito filosófico de paixão cunhado por Descartes
(2005, p. 84) serviu para designar tudo o que se faz ou acontece de novo. Vale
lembrar que Descartes, filósofo francês, ficou conhecido como o filósofo do
método, ou seja, sua concepção de homem e de paixão segue um raciocínio lógico,
metódico. Esse conceito está ligado a padecer, pois o que é passivo de um
acontecimento padece deste mesmo. Assim sendo, não existe pathos senão na mobilidade, na imperfeição.
Vamos agora perceber o sentido da paixão como movimento
inerente ao corpo, o que me parece justo pelo que nos propomos estudar. O corpo
é imperfeição, é incompleto e precisa movimentar-se em busca de sua própria
vitória, daí por que o corpo em si pede paixão.
A história
da palavra
pathos
está obscurecida por uma multiplicidade de conotações. A sua acepção mais geral
significa algo que acontece, quer em referência ao próprio evento quer à pessoa
afetada, “as minhas experiências” (PLATÃO, 2001, p. 74). O uso consideravelmente
alargado em sentidos éticos tem como exemplo, o “sofrimento instrutivo”. A especulação
filosófica bifurca-se a partir desta altura em dois sentidos diferentes,
investigando o pathos tanto como “o que acontece aos corpos” como “o que
acontece às almas”, o primeiro sob a rubrica geral de qualidades, o segundo sob
a de emoções. A ponte que nos é fornecida por Platão se dá pelo fato das sensações que reduzem o conhecimento
sensorial a um pathos dos sentidos que, por sua
vez, é capaz de disparar os pathe da alma.
Em Platão os pathe
éticos aparecem, pelo menos algumas vezes, como função
da materialidade: aparecem nas partes morais e corpóreas da alma e estão lá
presentes, como resultado da conjunção da alma com o corpo. Segue a posição
atomista tanto ao fazer dos pathe uma
espécie
de percepção como ao tentar reduzir a sensação (aisthesis)
ao contato. Onde se afasta dela é ao notar que quando os contatos são
excessivos há, como resultado, o prazer
e a dor.
Esta explicação
algo materialista não é unicamente de Platão ou a última palavra sobre o
assunto, mas é interessante pelo fato de fornecer o elo entre o pathos
como qualidade física e o pathos como fenômeno
ético.
A paixão em alguns momentos do pensamento platônico não é
entendido pelos seus leitores. Tomemos por base o conceito ocidental de paixão
arraigado ou ligado ao conceito de amor (Amor Platônico). Amor
platônico é uma expressão usada para designar um amor ideal, alheio a
interesses ou gozos. O senso comum lhe dá como sentido o de um amor impossível
de se realizar, um amor perfeito, ideal, puro, casto.
Trata-se, contudo, de uma má interpretação da filosofia de Platão,
quando vincula o atributo “platônico” ao sentido de algo existente apenas no
plano das idéias. Porque Idéia em Platão não é uma cogitação da razão ou da
fantasia humana. É a realidade essencial.
O mundo da matéria seria apenas uma sombra que lembraria a luz da verdade
essencial. A expressão amor Platônico é uma interpretação equivocada do
conceito de Amor na filosofia de Platão. O amor em Platão é falta. Ou seja, o
amante busca no amado a Idéia - verdade essencial - que não possui. Nisto supre
a falta e se torna pleno, de modo dialético, recíproco.
A Paixão seria o desejo voltado exclusivamente para o mundo das sombras,
abandonando-se a busca da realidade essencial. O amor em Platão não condena o
sexo, ou as coisas da vida material. Ele até vê o corpo como arkhé ou como espanto para o início da
caminhada. A paixão pelo corpo é o que nos conduz para a dor, o sofrimento e,
por sua vez nos conduz ao conhecimento de nós mesmos. Assim, em Platão vemos a
paixão como o próprio espanto do corpo e meio pelo qual nós nos compreendemos
mais adiante.
Percebe-se, portanto, que a paixão vista como Platão a viu não está
apenas no espanto, mas ela carrega o nosso corpo e a ele dá forças para
prosseguir no intuito de descobrirmos muito mais em nós mesmos. A paixão pelo
corpo é o espantar ou o admirar filosófico, ou seja, o princípio, o meio e o
fim de todas as outras ações que o envolvem.
Na obra Simpósio, de Platão, há uma passagem sobre o significado
do amor. Sócrates é o mais importante dentre os homens presentes. Ele diz que
na juventude foi iniciado na filosofia do amor por Diotima de Mantinea, que era uma sacerdotisa.
Diotima lhe ensinou a genealogia do amor e por isso as idéias de Diotima estão na
origem do conceito socrático-platônico do amor, conceito que consiste no uso do
verbo (palavra) como origem de tudo e, por isso, origem do amor e da paixão.
Não é por acaso que Sócrates nomeia Diotima como aquela que lhe deu as
instruções e os métodos mais significativos para amar/falar. A palavra falada
por amor é uma palavra que vem das origens.
Outro momento em que percebemos a originalidade do
amor como espanto primeiro, como início de tudo, encontra-se na obra O banquete. Em um dos diálogos sobre os
hinos cantados aos deuses, Erixímaco, falando por palavras de Fedro, questiona
a todos:
Não é estranho, que para outros deuses haja hinos e
peãs, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor todavia, um deus tão venerável
e tão grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer um
encômio?”. Nesse momento, os filósofos reunidos na casa de Agatão, lembram que
Parmênedes sem nenhum medo afirmou: “os deuses antes de tudo pensaram o amor,
pois são seres de paixão. (PLATÃO 2001, p. 5)
A noção
de amor é central no pensamento platônico. Em seus diálogos, Sócrates
dizia que o amor era a única coisa que ele podia entender e falar com
conhecimento de causa. Platão compara-o a uma caçada (comparação aplicada também ao
ato de conhecer) e distinguia três tipos de amor: o amor terreno, do corpo; o
amor da alma, celestial (que leva ao conhecimento e o produz); e outro que é a
mistura dos dois. Em todo caso, o amor (a paixão), em Platão, é o desejo por
algo que não se possui, mas que certamente se anseia descobrir.
Foi
Platão que entendeu o homem como ser bi-dimensional no que diz respeito aos
sentimentos primeiros (amor e paixão), ou seja alma e corpo. Ele harmonizou o mundo sensível da Physis, trabalhado
pelos filósofos pré-socráticos, com o mundo inteligível das Idéias, e
fez do homem, o mediador desta grande síntese. Há dois modelos fundamentais do
homem enquanto sentimentos na sua filosofia: um que se poderia dizer “unitário”
e outro, “tripartido”. (ALMEIDA JR 1999, p. 118)
A
meta a que se propõe o filósofo, agora, não é mais purificar a alma dos desejos
e dos prazeres sensíveis, mas fazê-la elevar-se, pelo impulso de Eros,
até à mais alta forma de conhecimento do Belo e do Bem. Fazendo isso, Platão
deixa mais claro que a alma não tem apenas uma estrutura poética − como
o Fédon sugeria – mas também uma estrutura erótica, como nos
mostram o Banquete e o Fedro.
Éros é
o grande daimon, aqui entendido como
espírito de luz, que faz a mediação entre o mundo sensível e o
mundo inteligível e traça o roteiro da grande dialética ascensiva da psyché.
Essa dialética é descrita no Banquete, num dos textos mais belos que já
se escreveu sobre o amor. Nele, Platão faz Sócrates revelar − como se fora um
segredo da sacerdotisa Diotima − o mito do nascimento e a verdadeira natureza
de Éros.
Estás vendo então - disse - que também tu não
julgas o Amor um deus?
- Que seria então o Amor? - perguntei-lhe. - Um
mortal?
- Absolutamente.
- Mas o quê, ao cento, ó Diotima?
- Como nos casos anteriores - disse-me ela - algo
entre mortal e imortal.
- O quê, então, ó Diotima?
- Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo o
que é gênio está entre um deus e um mortal.
- E com que poder? Perguntei-lhe.
- O de interpretar e transmitir aos deuses o que
vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os
sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como
está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele
a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como
também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos
encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se
mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos
deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que
em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer
outra coisa, arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos
e diversos, e um deles é justamente o Amor. (PLATÃO, 2001, p. 21)
Professor José Fábio Marques de Santana
´Professor de Filosofia e Literatura no Colégio Compacto de Piancó
Professor de Língua Inglesa na SMEC/São Mamede - PB
Um comentário:
Muito esclarecrdore
Obrigado por compartilhar.
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